DEPOIS DO POVO, A CULTURA

14/11/2019
Apropriação Cultural / Ph: Antônio Pedro Moreira
Apropriação Cultural / Ph: Antônio Pedro Moreira

Por Amanda DIniz

A cultura é um conceito que pode ter diversas vertentes. A mais aceita e conhecida é a antropológica, que também é a mais genérica. Essa teoria diz que cultura é tudo aquilo que "inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro da sociedade". Essa definição foi diversas vezes contestada, problematizada e reformulada. Tomando cultura como uma forma de manifestação artística de determinado povo, podemos dizer que as crenças e padrões são transmitidos historicamente, incorporados em símbolos e repassados de geração em geração por determinado povo.

A cultura desde sempre é associada ao conceito e civilização, desenvolvimento e indústria. Esta comparação foi bastante comum na França e na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX, onde cultura se referia a um ideal de elite. Isso acontece até os dias atuais e reflete diretamente no mundo da moda.

A apropriação cultural, termo bastante reforçado no século XXI, pode ser definida como a adoção de elementos específicos de uma cultura por outra totalmente diferente sem qualquer tipo de responsabilidade histórica. Esse termo remete a aculturação de povos, implicando na adoção de simbologias de gerações marginalizadas por uma cultura dominante e opressora. No mundo da moda ela é caracterizada pela introdução de formas de vestir ou adornos pessoais. Estes elementos, uma vez removidos de seus contextos culturais, podem assumir significados muito divergentes dos originais.  

Campanha Arezzo
Campanha Arezzo

Quando se existe a oportunidade de lucrar, a imagem muda. O que antes era feio, sujo e "demoníaco" passa a ser chique, fashion, vira moda. Para que isso aconteça, os protagonistas também são substituídos. Se embranquece os símbolos e atores, o capitalismo bota sua nova cara nas paradas de sucesso, passando por cima de toda a história e significados do adereço, estilo ou vestimenta, esvazia de sentido uma cultura com o propósito de mercantilização ao mesmo tempo em que exclui e torna invisível quem produz.

Um exemplo claro disso foi a famosa campanha da marca Arezzo, onde trouxe Cláudia Raia, Mariana Ximenes e Patrícia Pilar, três atrizes brancas, vestidas em roupas de origem negra, usando adereços advindos do povo africano, embranquecendo e tornando "possível" a aceitação dos produtos da loja com seus rostos claros e finos. 

Sobre a apropriação cultural, o estudante negro Luís Antônio, reflete que não se deve culpar quem consome os produtos oferecidos pelas lojas "As grandes empresas é que deveriam ser penalizadas por isso. Não acho que as pessoas que usam tem culpa, só usam porque o produto tá alí, tá na moda por conta da mídia. A questão é que as empresas, a moda, todo esse meio tem que valorizar a cultura do outro e dar espaço para as pessoas certas. Tem que se respeitar a história."

É importante lembrar que a apropriação cultural não é reconhecida por todos e o motivo para que isso exista é a mistura de povos, de raças, culturas e de símbolos. Outro motivo para que exista essa vertente contrária a apropriação cultural é a questão do "tornar visível algo marginalizado". Estes argumentos são facilmente refutados pois o uso da cultura do outro não se transforma em respeito e em direitos na prática do dia-a-dia, além disso, não se existe intercâmbio cultural quando também é reconhecida uma hierarquia entre as culturas, tendo uma superior e outra inferior.

Para o historiador Pedro Salles, a questão da apropriação cultural tem uma base no molde de dominação que o Brasil foi submetido, "O europeu é o modelo, né? Existe uma hierarquia. Nós temos um histórico de invasão, matança, destruição dos povos nativos; Foram 300 anos de escravidão, de marginalização, de preconceito no nosso país. O Brasil é racista e intolerante, não existe isso de povo misturado, feliz, receptivo, e amigável. O que existe aqui é a persistência dos opressores e oprimidos. Isso acontece na indústria o tempo todo, esse desrespeito cultural, essa apropriação mesmo". 

”E o que as pessoas que se apropriam dessa cultura, que gostam tanto dessa cultura, tão fazendo de fato na contribuição, na luta para melhorar a vida dessas pessoas? As lutas tem que ser valorizadas e apoiadas."

Falar sobre apropriação cultural significa apontar uma questão que envolve um apagamento de quem sempre foi inferiorizado e vê sua cultura ganhando proporções maiores, mas com outro protagonista. É diferente, por exemplo, ser branco e usar um turbante/dread por estética, por modismo e ser negro usando os mesmos adereços. Os olhares são outros, exatamente porque quando usado pelo protagonista daquela tradição, o símbolo ganha outro significado, ele é político, de resistência e empoderamento.

Iaracy Melo, formada em moda e especializada em moda africana enfatiza a importância da valorização, do reconhecimento da luta dos povos alvo de apropriação. "Quando a gente discute apropriação cultural não é o que cada um pode usar. As pessoas podem, podem ir na loja e comprar. O debate nunca foi esse. Eu acho que a questão é: esses grupos sociais das culturas que estão sendo apropriadas, o que é que eles estão ganhando, o que elas estão recebendo em troca da apropriação? E o que as pessoas que se apropriam dessa cultura, que gostam tanto dessa cultura, tão fazendo de fato na contribuição, na luta para melhorar a vida dessas pessoas? As lutas tem que ser valorizadas e apoiadas".

O mundo da moda e, consequentemente, a mídia, não estão preocupados com nada que não seja o mercado, o lucro. Dar valor às peças indígenas, africanas, rastafari não é o objetivo das grandes marcas. Isso fica evidente em diversas situações como novelas onde o figurino da protagonista branca sustenta um turbante na cabeça, ou que a loira "rebelde" usa seu cabelo liso e claro num dread curto. Esses meios de massa não estão se importando se a cultura é a marca de um povo, por isso a necessidade de reafirmar o protagonismo. Por fim, é necessário bater na tecla de que determinados povos mantém a sua cultura, mesmo que ela tenha sido intensamente perseguida, e não usar tais produtos é uma forma de valorizar as lutas e entender que aquela estilo, aquela "moda", aquele objeto, pertence a um povo e tem uma história.

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